sexta-feira, 21 de março de 2008

Entrevista com a fotojornalista Claudia Andujar



 
 

Durante 34 anos, a fotógrafa Claudia Andujar, 74, focou seu olhar no povo ianomâmi. Eleger esse povo amazônico foi uma decisão quase intuitiva que se tornou a causa de sua vida, desde que travou o primeiro contato com eles, em 1970, aos 39 anos. Naquela época, Claudia trocou o trabalho de repórter fotográfica que exercia para revistas norte-americanas como Life e Jubilee e também para a Realidade, da Editora Abril, por seguidas vivências e documentações em terra ianomâmi, no Amazonas e em Roraima. Com um pé na cidade e outro na floresta, em 1978 ela participou da fundação da Comissão Pró-Yanomami, ONG que coordenou até 2000 e foi essencial na demarcação do território indígena ianomâmi, em 1991. Claudia nasceu na Suíça, passou a infância na Transilvânia (região entre Romênia e Hungria) e a juventude em Nova York e se mudou para São Paulo em 1955, aos 24 anos. Após viajar pela América Latina, em 1958 esteve com os índios pela primeira vez: durante dois meses, morou com os carajás na ilha do Bananal, hoje situada em Tocantins. O exercício de fotojornalista rendeu inúmeras exposições no Brasil e no exterior. Hoje retrabalha suas imagens e mostra o que aprendeu nesses anos de dedicação "ao ser vulnerável".

Por que você escolheu os ianomâmis?

Em 1971, decidi deixar o jornalismo para desenvolver um trabalho autoral, extenso. Havia conhecido os ianomâmis pouco tempo antes, na Amazônia, como repórter fotográfica da revista Realidade. Eles ainda não tinham sofrido o contato desordenado com o mundo civilizado, eram mais livres. Fiquei tocada humanamente pela informalidade na vida cotidiana. Fui recebida com naturalidade, permitiram que a gente se conhecesse. Eles têm muita curiosidade em relação ao novo.

O que lhe chamou a atenção em relação ao modo de vida deles?

A sabedoria de viver no meio de uma natureza grandiosa, muitas vezes árdua. As relações entre pais, filhos, avós, a forma como conviviam. Durante os três primeiros anos de vida, por exemplo, a mãe não se separa da criança: dorme junto na rede e amamenta durante esse tempo todo. Há uma ligação física e emocional muito grande em relação às crianças. A opinião dos mais velhos é muito importante, sobretudo a dos xamãs, que são pessoas especiais que fazem a intermediação do ser humano com o mundo dos espíritos.

De que maneira sua espiritualidade foi influenciada por essas vivências?

Segundo o xamanismo, cada elemento da natureza possui um espírito com propriedades específicas para sanar o mal: o Sol, a Lua, o rio, o vento, as pedras, o homem. A interdependência faz com que cada um tenha papel insubstituível para o mundo funcionar. Embora não tenha participado dos rituais xamânicos – somente observei –, hoje me sinto integrada a esse pensamento de totalidade do Universo.

 

Como você transmitiu isso nas fotografias?

Uma parte do meu trabalho é dirigida aos rituais, nos quais os xamãs recorrem ao "invisível" para encontrar soluções como cura de doenças e falta de chuva. Para conseguir retratar esse pensamento ancestral e mitológico, procurei unir a imagem do homem a detalhes da natureza, utilizando fusões de fotografias. Tentei criar uma magia.

Qual é a grande diferença entre a nossa cultura e a indígena?

O acúmulo de coisas não tem valor para eles e a troca é mais valorizada do que a posse. A propriedade coletiva faz a grande diferença. Não há sentido em ser dono de uma terra, de um objeto, como na cultura ocidental. Em 1977, depois de morar durante 14 meses na comunidade dos Wakatautheri, em Roraima, quis jogar muita coisa fora ao voltar para minha casa, em São Paulo. Achava supérfluo. É claro que hoje em dia as coisas da minha casa me agradam pelo conforto, pela estética e pelas lembranças que trazem. Mas posso sobreviver sem elas. Os ianomâmis não acumulam por razões práticas também, porque quase tudo se destrói por causa da umidade, do calor e das pragas. Essas experiências criam em nós outra maneira de entender o mundo.

O que mais a tocou?

A fragilidade, quer dizer, a vulnerabilidade. Quando se enfrenta o desconhecido, há poucos meios de se defender. Há 30 anos, os ianomâmis não entendiam que havia um mundo que estava a fim de ocupar suas terras e extrair suas riquezas. Nos anos 80, durante a invasão da terra ianomâmi, os garimpeiros passaram a distribuir presentes para demonstrar "amizade", que foram aceitos por muitos. Até que as doenças apareceram e eles começaram a morrer.

Hoje eles possuem consciência dessa vulnerabilidade?

Existe uma geração que está se conscientizando, inclusive sobre a importância da língua e da preservação da cultura. Hoje há duas organizações não-governamentais voltadas para os ianomâmis: uma é a Comissão Pró-Yanomami, formada por uma equipe multidisciplinar em 1978, com objetivo de reivindicar ao governo brasileiro o direito às terras. A outra é a Hutukara, uma organização recém-criada somente por ianomâmis, cujo nome significa "terra ancestral". O presidente é o xamã Davi Kopenawa Yanomami, forte líder político. A idéia é que a CCPY se afaste e eles assumam a autonomia, tenham seus próprios advogados, projetos de saúde e educação e aprendam também a falar português.

Qual foi o dia mais feliz da sua vida?

O dia em que o governo brasileiro reconheceu as terras do povo ianomâmi, em 1991, foi inesquecível. Fomos convidados pelo Planalto a dar a mão ao presidente, o Collor (risos), que não foi aquela coisa que as pessoas desejavam, mas, para nós, a garantia das terras significou uma grande conquista. Com a criação do território indígena ianomâmi, mais de 96 mil quilômetros de terras foram destinados para uso e usufruto deles, em Roraima e no Amazonas. Me empenhei muito nessa questão, durante 14 anos. Uma dedicação que considero a coisa mais importante que fiz na vida.

Qual é o significado da fotografia na sua vida?

É com a fotografia que encontro mais facilidade de me comunicar e dizer o que penso do mundo. No meu caso, entender o outro por meio da fotografia também é um ato político.

PARA SABER MAIS

LIVROS

A Vulnerabilidade do Ser, Claudia Andujar, Cosac Naify

Graças às imagens de Cláudia Andujar o mundo passou a conhecer os índios ianomâmis. Suíça naturalizada brasileira desde 1957, Cláudia começou a carreira de fotógrafa na revista Realidade, mas logo partiu para um trabalho autoral junto aos índios na Amazônia. Publicou no exterior os livros Amazon (1973) e Mitopoemas Yanomami (1979) e passou a ser conhecida no Brasil por ter participado entre 1978 e 1992 da demarcação das terras do ianomâmis, em Roraima (uma área do tamanho da Bélgica). Fazia 20 anos que Cláudia Andujar não remexia em seus arquivos de fotos. Após dois anos revendo 15 mil negativos em preto-e-branco e tantas outras imagens em cores, ela apresenta em A Vulnerabilidade do Ser uma síntese acurada de toda sua obra com fotografias que tocam naquilo que há de mais humano: o amor pelo próximo. Com 142 imagens, a edição, que é bilingüe, traz artigos e uma emocionante entrevista com a autora.

Nenhum comentário: